dois perdidos numa noite suja

domingo, julho 17, 2005

Histórias de além-mar


Navegar é preciso, viver não é preciso

A bússola, a pólvora, a imprensa, a retorta, a América, a chantagem, inventos sobre inventos, punham água na boca do admirável povo português e a inveja na gente que manejava a pluma de pato no papiro encarquilhado dos alvarás.

Era preciso inventar.

Nomeada uma comissão de notáveis, professores da Escola de Sagres, aceitou essa, em assembléia memorável, e redondeza da Terra e seu movimento em torno do dólar, o direito de cavação, a superioridade dos cachimbos de barro sobre os de pau e infalibilidade do papa.

Tiveram começo os trabalhos de invenção.

Todo o país meditava, ruminava, esperava.

Cessaram as justas entre Ramires e Lopes de Baião; o fado silenciara em Coimbra; apenas, de vez em quando, quebrando a pasmaceira modorrenta do reino, dois ou três latagões do Alentejo espanavam as armaduras, e após um almoço adomingado, em que os chouriços e vinhaças alvoroçavam o heroísmo – deixavam os solares limosos e batiam, por desfastio, em estrondosa caçada às lebres ou aos mouros.

Se lhes caísse no caminho algum solarengo azarado, de escudo diferente, que por bebedeira ou picardia não saudasse os caçadores com o devido “Viva Deus”, era isso motivo normal para que não pensasse mais em caçadas, em lebres ou em mouros; então, com arrepio ou volúpia, viam-se broquéis amassados, lanças enfurecidas, e o sangue de dois ou três fidalgos ia empastar o pó do chão, divertimento esse a que não raro aderia o resto do troço.

Todavia, não passavam os prélios além daí; à noite do primeiro dia, os peões acampavam no alto do cabeço mais próximo, e despidas as armaduras, sentados em torno do lume, tiravam dos alforjes dois ou três anhos de salmoura, assando-os, trucidando-os, mastigando-os com o comentário da vitória recente, o que justificava razoáveis e deliciosas bebedeiras.

E assim corria mansamente a vida do adorável povo português, à espera do primeiro invento.


Decididamente, era preciso inventar.

MENDES FRADIQUE. História do Brasil pelo método confuso. Companhia das Letras, org. Isabel Lustosa